O modelo institucional trazido pelo Novo Marco Regulatório do Setor Portuário: a captura política da ANTAQ pela SEP
Por Rafael Véras de Freitas
A Lei n° 12.815/2013 trouxe duas novas diretrizes no que se refere ao desenho institucional delineado no Setor Portuário, a saber: (i) a condição de Poder Concedente foi transferida da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, entidade integrante da administração federal indireta, que exerce atribuições técnicas, para a Secretária Especial de Portos – SEP, órgão competente para assessorar, direta e imediatamente, o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes para o desenvolvimento e o fomento deste setor, que exerce funções políticas; e (ii) a subordinação daquela agência reguladora setorial às diretrizes deste órgão de governo.
No que tange à primeira diretriz o Novo Marco Regulatório do Setor Portuário implementou um desenho institucional que equilibra as funções, técnicas e equidistantes, que devem ser exercidas por uma entidade reguladora setorial, e as funções políticas, que devem ser exercidas pelos órgãos de governo. Aprofunde-se o ponto.
Sob o regime anterior, a função de Poder Concedente era exercida pela ANTAQ sob as diretrizes daSEP. Isto é, embora o órgão de governo exercesse a função política em determinar a oportunidade e a conveniência em licitar o “Porto Organizado”, quem figurava na qualidade de Poder Concedente era a agência reguladora setorial, como se extrai do disposto no artigo 2° da Portaria n°108, de 06 de abril de 2010, da SEP.
Não obstante, tal arquitetura institucional restou alterada pelo Novo Marco Regulatório do Setor Portuário. De acordo com artigo 1°, parágrafo único, do Decreto n°8.033/2013, a função de Poder concedente foi transferida da ANTAQ para a SEP.
Trata-se de alteração salutar, na medida em que a entidade reguladora se encontra em manifesto conflito de interesses quando exerce, de forma concomitante, as funções de Poder Concedente na delegação de serviços públicos e a de agente fiscalizador dessas atividades, no exercício da função de polícia administrativa.
Dito de outro modo, a neutralidade exigida do regulador, para o fim de compor os interesses envolvidos no setor regulado (do Poder Concedente, dos concessionários e dos usuários), se mostra comprometida, quando esta entidade assume a condição de representante dos interesses do “Governo”, e não dos interesses de “Estado”.
Some-se a isso o fato de que esta modelagem institucional vai ao encontro de alterações que já foram levadas a efeito em outros setores regulados (como, por exemplo, no setor elétrico, no qual houve a transferência dessa função da ANEEL para o Ministério de Minas e Energia –MME, por meio da Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004).
Por outro lado, a segunda diretriz no sentido de estabelecer uma subordinação da ANTAQ frente à SEP vai de encontro ao modelo de Estado Regulador consagrado no artigo 174 da Constituição da República – CRFB.
Essa subordinação pode ser percebida, por exemplo, na disciplina dos procedimentos licitatórios prévios à delegação de Concessões de “Portos Organizados”. O artigo 6°, § 3°, da Lei n°12.815/2013, prevê que “Os editais das licitações de que trata este artigo serão elaborados pela Antaq, observadas as diretrizes do poder concedente”. Do mesmo modo,o §5° do mesmo dispositivo prevê que “o poder concedente poderá determinar a transferência das competências de elaboração do edital e a realização dos procedimentos licitatórios de que trata este artigo à Administração do Porto”. Por fim, cite-se o artigo 10 da Lei n°12.815/2013, no qual consta que “O poder concedente poderá determinar à Antaq, a qualquer momento e em consonância com as diretrizes do planejamento e das políticas do setor portuário, a abertura de processo de chamada pública para identificar a existência de interessados na obtenção de autorização de instalação portuária”(grifos nossos).
Como se pode perceber, de acordo com a sistemática do Novo Marco Regulatório, a SEP, na qualidade de Poder Concedente, não se limita a fixar as políticas públicas do Setor Portuário – tal como previsto, originalmente, na Lei n°11.518/2007 –. Esse órgão de governo se imiscui nas atribuições técnicas da ANTAQ, o que viola a sistemática regulatória do Estado Brasileiro. Explica-se.
A entidade regulatória recebe da autoridade eleita as diretrizes para o atendimento do interesse público geral, materializadas em políticas públicas; desse modo, como tais políticas necessitam de eficiência para a sua aplicação, a atividade regulatória traduz, em comandos técnicos permeados pela participação do setor regulado, os preceitos basilares traçados pelo agente albergado pela legitimidade democrática formal. Trata-se, portanto, de função administrativa equidistante dos interesses de governo – composta pelas atividades normativas, executivas e judicantes –que, ponderando todos os interesses envolvidos tem por fim atingir o “ponto ótimo”, na implementação das políticas públicas governamentais.
Daí porque, neste particular, a entidade de governo deve se limitar ao exercício do planejamentoda exploração dos portos organizados e das instalações portuárias.
Essas diretrizes de planejamento se materializam, por exemplo, na elaboração do plano geral de outorgas no setor portuário; em disciplinar o conteúdo, forma e periodicidade de atualização dos planos de desenvolvimento e zoneamento dos portos; na definição das diretrizes para a elaboração dos regulamentos de exploração do porto organizado; na elaboração do relatório com o resultado da implementação das medidas previstas para o setor portuário (artigo 2°, incisos I, II, III e VI, do Decreto n°8.033, de 27 de junho de 2013), e não em estabelecer determinações à agência reguladora setorial. São, portanto, funções estritamente políticas, e não técnicas.
Não é por outra razão que se entende que a SEP não deveria se imiscuir na função técnica de elaboração dos instrumentos convocatórios, para delegação do “Porto Organizado”, nem, muito menos, expedir determinações à ANTAQ para delegar as competências de elaboração do edital e da realização dos procedimentos licitatórios.
Essa, aliás, não é a primeira vez que se atenta contra independência das agências reguladoras. Citem-se os seguintes exemplos ocorridos no país: (i) em 2003, quando o então Presidente da República considerou abusivo o reajuste das tarifas de telefonia fixa e recomendou ao Ministro das Comunicações que determinasse à Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL a sua redução; (ii) em 12 de junho de 2006, quando da prolação do Parecer Normativo nº51, da lavra da Advocacia Geral da União – AGU, no qual se questionou a submissão de decisão da ANTAQ à supervisão do Ministério do Transporte; e (iii) em agosto de 2007, quando, após o acidente de aéreo de Gongonhas, o Congresso Nacional, por meio de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, institui uma investigação nas funções da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC.
Trata-se de hipóteses de “Captura” da agência reguladora pelo próprio poder político, vicissitude que se caracteriza como uma “captura política”, a ser corrida por meio da intervenção regulatória. Se não bastasse o fato de que a estipulação de uma subordinação entre ANTAQ e a SEP viola a sistemática regulatória delineada pelo Estado Brasileiro, tal ingerência de um órgão em uma entidade autárquica está em descompasso com o conceito de “supervisão ministerial”, consagrado, há muito, nos artigos 19 a 29 do Decreto-lei n°200, de 25 de fevereiro de 1967.
Isto porque as entidades da Administração Indireta – de que são exemplos as agências reguladoras, na qualidade de autarquias – não são subordinadas às entidades da Administração Direta. Estas entidades se submetem ao instituto da “tutela”, assim considerado como o controle finalístico acerca do atendimento das políticas públicas governamentais, e não a uma relação hierárquica, ainda mais em se tratando de entidades reguladoras, que gozam de uma autonomia reforçada.
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